MATÉRIA REPUBLICADA DE: https://sbi.org.br/sblogi/covid-19-a-vez-das-celulas-t/
Por: Martín Bonamino*
No início da pandemia tudo girava em
torno dos anticorpos: o teste rápido vs os testes de laboratório; IgM vs IgG;
Inquéritos sorológicos e decaimento de títulos de anticorpos; passaporte
imunológico para pessoas com IgG anti SARS-CoV-2.
A imunologia tem dessas coisas. Às
vezes, em meio ao pandemônio da pandemia, algumas coisas importantes recebem
menos atenção do que deveriam.
O fato é que nas últimas semanas
(re)surgiu na discussão uma população de linfócitos muito relevante. Nenhuma
novidade, na verdade. Os linfócitos T são sabidamente células com funções
imunológicas de efetuação de respostas antivirais, seja através da produção de
citocinas ou eliminando ativamente células infectadas.
Alguns grupos foram então analisar as
células T para verificar se elas seriam capazes de reconhecer os antígenos do
SARS-CoV-2. No caso dos linfócitos T, estes antígenos são enxergados como
fragmentos das proteínas do vírus que são carregados nas moléculas do complexo
principal de histocompatibilidade (chamadas de HLA em humanos).
Utilizando misturas destes fragmentos
das proteínas (conhecidos como peptídeos), os investigadores conseguem cobrir
as diferentes possibilidades de peptídeos derivados de cada proteína do vírus.
Estas misturas de fragmentos são conhecidas como pools quando se referem a
vários pedaços (que podem, por exemplo, cobrir uma proteína específica) ou
megapools, quando se referem a grandes conjuntos de fragmentos que podem cobrir
várias proteínas ou até mesmo a todas as proteínas do vírus.
Usando estes pools e megapools de
peptídeos virais, um grupo de pesquisadores dos EUA demonstrou que, tanto
linfócitos T CD4+ quanto CD8+, eram capazes de reconhecer proteínas não só da
famosa proteína S (Spike), mas também de outras proteínas do SARS-CoV-2 1.
Quando enxergavam estes peptídeos, as células T se ativavam e produziam
citocinas, um sinal de que o reconhecimento era funcional. Estes dados
colocaram as células T de vez na jogada. Agora não era apenas a produção de
anticorpos por células B que importava para o reconhecimento e eventual
proteção para a COVID-19, mas as células T poderiam ter um papel relevante.
O mais interessante, no entanto, ainda
estava por vir. Um grupo de pesquisa de Estocolmo decidiu analisar os suecos
que haviam voltado das férias no norte da Itália, local duramente castigado
pela COVID-19. Em uma abordagem interessante, o grupo avaliou células T
congeladas de doadores de sangue que realizaram a doação em 2019 (antes da
pandemia) ou em 2020. Analisaram também pacientes com formas brandas ou severas
da COVID-19 e também os pacientes convalescentes. A estes grupos, foi adicionado
também um grupo de indivíduos que conviveu com pacientes infectados, mas não
desenvolveu a doença.
Os dados foram muito reveladores.
Avaliando a frequência de células T capazes de se ativar ao reconhecer o
megapool de peptídeos, os pesquisadores demonstraram que este reconhecimento
era raro nas células dos doadores de sangue de 2019 mas relativamente frequente
nos indivíduos que doaram em 2020, sugerindo um contato prévio com o vírus que
possa ter resultado em células T específicas2. Os pacientes infectados com a
doença ativa ou convalescentes apresentaram frequência muito maior de células T
reconhecendo os peptídeos do SARS-CoV-2, como esperado. Mas o dado curioso foi
que boa parte dos indivíduos que conviveram com pacientes infectados
apresentavam uma frequência relativamente alta de células T reconhecendo
peptídeos do megapool, sugerindo que estes indivíduos expostos tinham gerado
respostas T contra o vírus (potencialmente protetoras?) sem terem ficado
doentes. Um dado ainda mais intrigante é que, enquanto os pacientes acometidos
pela COVID-19 quase invariavelmente fizeram anticorpos contra o vírus, alguns
destes indivíduos expostos, mas não doentes, apresentavam células T contra o
vírus sem terem desenvolvido anticorpos detectáveis.
Este dado abre a possibilidade de que
talvez o vírus em baixas cargas tenha gerado uma resposta T que o controlou sem
produzir anticorpos de forma exuberante, ou que os títulos de anticorpos não
foram muito altos e talvez já se encontrassem em doses muito baixas para serem
detectados. Em todo caso, estes dados sugeririam uma resposta T na ausência de
doses relevantes de anticorpos em uma fração dos indivíduos analisados.
Outra possibilidade é que alguns
indivíduos contassem com células T capazes de reconhecer o SARS-CoV-2 mesmo
antes de encontrar o vírus. Esta hipótese é ainda mais fascinante, mas está
fundamentada em um conceito muito sedimentado na imunologia e que também parece
ter sido negligenciado durante o início da pandemia: patógenos semelhantes apresentam
frequentemente porções iguais de proteínas, e uma resposta T contra um peptídeo
derivado de uma proteína com sequência idêntica em diferentes patógenos pode
levar a um reconhecimento cruzado.
O fato é que o SARS-CoV-2, ao contrário
do propagado por teorias conspiratórias que atribuem uma origem sintética ou
até mesmo extraterrestre ao novo coronavírus, é um vírus que tem parentes
próximos na sua filogenia e proteínas muito semelhantes às de outros
coronavírus3. Alguns destes vírus, inclusive, circulam amplamente pela
população causando gripes sazonais. Seria então até certo ponto esperado que
respostas de células T que reconheçam proteínas destes outros vírus promovam um
reconhecimento cruzado do vírus causador da COVID-19.
Este reconhecimento cruzado com outros
coronavírus foi exatamente o que mostraram os trabalhos de dois grupos em
publicações recentes4,5. Os dados destes estudos indicam que as proteínas S, N,
NSP3, NSP4, ORF3a, ORF8, NSP7, NSP13 e provavelmente outras, do SARS-CoV-2 são
reconhecidos quando megapools de peptídeo são utilizados para estimular células
T de indivíduos nunca expostos ao SARS-CoV-2. Estes trabalhos mostraram que
isto ocorre frequentemente quando os pacientes foram expostos e tem anticorpos
para os vírus sazonais HCoV-OC43, HCoV-NL631, HCoV-229E ou HCoV-HKU1 5. Quantos
outros vírus que circulam entre humanos e/ou outras espécies são capazes de
gerar células T de memória capazes de reconhecer o SARS-CoV-2? Não sabemos
ainda ao certo. Mas algumas destas publicações recentes apontam que entre 20 e
60% da população de diversos países poderia ter células T capazes de reconhecer
o novo coronavírus mesmo sem nunca ter encontrado este patógeno antes 1,2,4,5.
Quanto tempo duraria este reconhecimento
pelas células T? Também não temos certeza, mas estudos recentemente publicados
com a análise das células T de pacientes que foram infectados pelos vírus
causador da pandemia de SARS indicam que, mesmo após 11 anos, as células T
reconhecedoras de peptídeos destes vírus ainda podem ser encontradas no sangue
dos indivíduos6, e que estas células também reconheceriam de forma cruzada o
SARS-CoV-2 mesmo após 17 anos da infecção pelo SARS-CoV causador da SARS 4.
Estes dados reforçam a ideia de que
focar exclusivamente em uma resposta de anticorpos neutralizantes e esquecer
das células T no início da pandemia foi, de certa forma, uma miopia
imunológica. A queda nos títulos de anticorpos contra o novo coronavírus 7–9,
fenômeno também visto na resposta a outros vírus do mesmo tipo, é um fator de
confusão para a avaliação em inquéritos sorológicos, para a detecção da
história pregressa de infecção e mesmo para a avaliação da suscetibilidade a
novas infecções. A avaliação da resposta das células T é metodologicamente mais
complexa, mas talvez seja um dado mais robusto em termos de testemunho da
história de exposição ao vírus (ou a vírus relacionados) e mesmo de indicativo
de proteção.
Se imagina neste momento que as células
T pré-existentes poderiam limitar a intensidade da infecção ou mesmo evitar que
o paciente adoeça quando exposto ao novo coronavírus. No entanto, ainda não há
dados mostrando a proteção para a COVID-19 em indivíduos que possuam estas
células T previamente capazes de reconhecer o vírus. Teremos, portanto, que
aguardar novos resultados para confirmar (ou não) esta hipótese.
Existe ainda a possibilidade de que ter
uma resposta T prévia possa ser um mau negócio e que células anti SARS-CoV-2
preexistentes possam causar mais inflamação e aumentar a gravidade da doença.
Não há, no entanto, qualquer evidência sólida ainda que aponte esta
pré-resposta de células T como potencialmente nociva. A hipótese mais provável
é, portanto, de uma proteção, ainda que parcial.
A este ponto, a possibilidade de uma
fração considerável das pessoas já ter uma resposta T pré-montada que possa
reconhecer e limitar a infecção pelo SARS-CoV-2 pode impactar os modelos
epidemiológicos de infecção na população e de percentuais de pacientes
efetivamente infectados até que se atinja a famosa imunidade de rebanho. Talvez
estejamos partindo já de um patamar de “previamente imunizados” razoavelmente
alto (20%, 30%, 40%?) e isto limite consideravelmente a população de
vulneráveis. Esta hipótese ajudaria a explicar por que, mesmo em locais muito
castigados pela COVID-19, o percentual de pacientes soroconvertidos é mais
baixo que o esperado. Inquéritos epidemiológicos de avaliação de células T
reativas aos megapools de peptídeos da SARS-CoV-2 na população pré e pós
pandemia certamente já estão em curso e nos ajudarão a entender melhor este
cenário.
Da mesma forma, a variabilidade genética
da população em termos de HLAs pode impactar a quantidade e qualidade de
epítopos de SARS-CoV-2 (e de outros vírus relacionados) apresentados aos
linfócitos T, levando a respostas diferenciais em diferentes populações. Nosso
grupo está envolvido em estudos que avaliam a coleção de potenciais peptídeos
do SARS-CoV-2 apresentados pelos HLAs presentes em diferentes proporções em
populações diversas10.
Por último, considerando esta história e
o papel de protagonismo que as células T estão assumindo, será fundamental que
as vacinas em desenvolvimento sejam capazes de gerar tanto respostas de
anticorpos quanto de células T. Desta forma podemos evitar falhas no
desenvolvimento, como as que ocorreram com outras vacinas focadas
exclusivamente na geração de anticorpos, resultando em baixa proteção.
Felizmente esta geração de resposta de anticorpos e de células T parece ser
alcançada por ao menos uma das vacinas em desenvolvimento11. Embora conheçamos
agora a capacidade de parte destas vacinas de gerar respostas de anticorpos
neutralizantes e de células T vírus-específicas, devemos esperar ainda algumas
semanas para sabermos se elas realmente protegem os indivíduos da COVID-19, e
ainda mais tempo para sabermos a duração desta eventual proteção.
Chegamos assim ao fim desta reviravolta,
em que, para satisfação dos “Teólogos” (que, na imunologia, são aqueles que se
dedicam a estudar os linfócitos T), as células T assumem um papel mais central
nas respostas contra o novo coronavírus. Novos estudos que vem sendo publicados
quase que diariamente nos indicarão o real papel desta população de linfócitos
na resposta ao SARS-CoV-2.
Referências:
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Le Bert, N. et al. SARS-CoV-2-specific T
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(2020) doi:10.1016/S0140-6736(20)31604-4.
*Martín Bonamino é Pesquisador do
Instituto Nacional de Câncer (INCA) e Especialista da FIOCRUZ.
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